Crítica | O Doutrinador (HQ)

Há tempos não visitava uma obra que me causasse tantos sentimentos mistos. E o que posso dizer sobre a HQ O Doutrinador é: não sei dizer se gostei.

No geral, dá pra dizer que a ideia é ótima. Concorde com ela ou não, você há de admitir que gera discussão e (pelo menos em teoria) nos põe pra pensar.

Se você não sabe do que se trata, a ideia é a seguinte: um vigilante brasileiro, absolutamente violento e empenhado em combater a corrupção. Em todos os aspectos, mas em especial entre os políticos. Ele simplesmente mata todo político corrupto e fomenta no cidadão comum a ideia que ele também pode e deve se revoltar contra esse sistema político brasileiro.

Se pensarmos de uma forma um pouco mais realista, como a própria história se propõe a ser, imaginamos que esse anti-herói não tem bandeira, é completamente apartidário e simplesmente cansou de toda a corrupção. E em grande parte do tempo, ele realmente é assim. De uma forma bem torta, contra a lei (que não funciona), a régua moral dele mede todo corrupto de forma igual.

E o contexto histórico onde ele se insere também parecia ser assim, sem bandeira. A primeira história parece se passar por volta de 2013, quando estávamos vivendo um momento de mudança no status quo do cidadão brasileiro que se revoltava contra a corrupção sistemática e foi pras ruas no movimento que ficou conhecido como a revolta dos 20 centavos.

Porém, tanto na vida real, como na HQ, vimos que esse movimento popular acabou desencadeando uma nova onda reacionária no país que parecia também combater a corrupção, mas que na verdade só estava, no máximo, a redirecionando. Mudando as caras e os bolsos oficialmente.

Assim, da mesma forma que muitos, como eu, sentimos uma catarse ao ver os protestos acontecendo, e acreditando que, de fato, o gigante havia acordado, há um certo ‘prazer ruim’ em ver um homem com recursos para tal acabando com a podridão do sistema e com a esperança de que está fazendo o bem para o povo.

Na verdade ele estava apenas alimentando o ódio que se instaurou no país, acreditando que estava fazendo o bem. Da mesma forma como muitos cidadãos fizeram, só que de forma menos direta, através do voto e do engajamento.

O Doutrinador nos faz questionar a nossa própria bússola moral. Ele nos faz acreditar que a única maneira de acabar com a corrupção no Brasil é através da violência, exterminando (literalmente) a corrupção.

Como obra artística, que faz pensar, isso é bom. Arte também serve pra nos fazer questionar a nós mesmos e o ambiente social no qual nos inserimos. Então, nesse ponto, a obra é totalmente válida. Tentar nos convencer de que ela está certa, que esse é o único caminho, aí pode haver uma falha.

E já que entramos no mérito da obra em si, analisando O Doutrinador como uma história em quadrinhos, um gênero literário, ele tem também suas falhas.

Este compilado que li traz as três publicações que já haviam sido lançados oficialmente do personagem até 2018, ano de lançamento do filme baseado nas mesmas histórias. Comprei nessa época, mas só o li agora, em 2020.

O primeiro tomo tem uma dinâmica tão rápida, que torna a narrativa vazia. O personagem principal simplesmente sai matando todos os políticos corruptos e diversos lugares do país conforma sua fama vai crescendo através da mídia e ele vai ganhando o medo daqueles que caça a admiração daqueles que defende.

Acontece que não há profundidade. Não há construção do personagem. Não sabemos nada dele, apenas que ele é um cidadão que cansou de tudo e resolveu agir. Mas como ele chegou até ali? E como ele consegue fazer o que faz, que tipo de treinamento ele teve, porque ninguém o pega, como ele é tão eficiente, de onde vem seus recursos?

Quando se assume que isso não é relevante ainda, é possível acompanhar a história, acreditando que sabermos no momento oportuno. Contudo, a narrativa ainda continua deixando a desejar em profundidade e em argumento.

Os diálogos por vezes são extremamente clichês e com frases de efeito. Como se trata de uma edição de luxo, há uma boa sessão de extras, com textos do autor, rascunhos e referências. Lá sabemos que em seu processo de criação, o autor se utilizou de música como referência. E, de fato, em diversos momentos reconhecemos trechos, versos de canções que até se encaixariam na história se fossem melhor colocados, e não jogados.

Aliás, abrindo um parêntese pra comentar sobre música, há um momento em que o personagem principal deixa bem clara sua visão um tanto distorcida e certamente limitada quando menciona de forma pejorativa o cenário musical e artístico do país. Eu mesmo já pensei assim por um tempo, mas aprendi sobre como funciona a arte popular e acho, particularmente, uma bobagem isso de ‘marxismo cultural’.

Falando em referências, pra quem já tem um escopo um pouco maior de histórias em quadrinhos, consegue observar com clareza as referências a algumas obras consagradas, a mais facilmente identificável é Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller.

Além da inspiração na história e no personagem em si, um homem comum que dispõe de certos recursos, usa uma máscara, adota a escuridão e combate a corrupção de não uma cidade apenas, mas um país inteiro que se tornou uma Gotham, notamos que essa narrativa tenta emular a obra de 1986. É bem clara a forma como a mídia participa da história. Além, é claro, da violência empregada pela anti-herói.

Ainda assim, a primeira história tem uma certa coesão. Ao fim dela, vemos uma pequena (mas não tão satisfatória) explicação sobre como e porquê o Doutrinador consegue fazer o que faz. E seu final é bem apoteótico. Novamente, catártico. É inegável que ele nos põe a pensar: ‘imagina só se isso acontece mesmo?’. E questionamos se, talvez, dessa forma, as coisas se tornassem melhores para o povo.

E então, na segunda história, temos uma narrativa mais bem construída. O personagem principal passa a ter um pouco mais de ajuda em sua jornada, e também tem contratempos, perdas, que tornam tudo aquilo mais crível.

As referências à realidade brasileira, especialmente na caracterização dos personagens continuam muito boas, mas dá pra sentir uma pontinha de parcialidade. Não que isso, por si só, seja um problema. É bom se assumir e não ficar em cima do muro. Mas isso nos faz questionar se tudo seria igual caso a história se passasse hoje, por exemplo. Ou se fosse nos anos 90, 80 e especialmente, nos 70.

No entanto, no que se refere à narrativa e arte, notamos uma evolução entre esse volume e o primeiro. Aqui a obra está mais madura. Ao mesmo tempo, não é tão cativante. Fica uma sensação de que queremos que a história acabe logo. E seu final, não é nem de longe, tão ‘gratificante’ como o do primeiro, sendo mais aberto, deixando pontas que o primeiro não deixa.

O terceiro tomo, ou volume, é um compilado de histórias menores, talvez até tie-ins. São histórias curtas e fechadas que talvez possam ser lidas em separado, sem a necessidade de conhecer os arcos principais do personagem. Podem ser uma boa forma de conhecê-lo.

O que faz desse último volume ‘menos bom’ do que poderia ser, são as imagens soltas que ele traz entre uma história e outra. Com frases de efeito, e até um lema/mantra ‘Eu sou a urgência das ruas’, esse volume acabou sendo mais uma propaganda do que outra coisa. E o pior: não apenas propaganda do personagem e da obra, mas de ideias/ideologia.

Em 2018 assisti ao filme em uma sessão especial para imprensa e até escrevi sobre ele para O Capacitor. Lembro de ter ficado um pouco decepcionado na época, estava com a expectativa grande. Só conhecia o personagem por alto, tanto que só li a obra original agora.

Porém, hoje, com o passar do tempo e tendo conhecido ambas as obras, acredito que prefiro o filme. A construção do personagem é mais bem feita e crível e, além disso, mesmo com as falhas do filme, no geral a obra é melhor.

Ainda assim, gosto do personagem. Acho ele importante, apesar de perigoso. Ele, como já dito, levanta discussões importantes e faz refletir. Ao mesmo tempo, permite interpretações equivocadas e pode ser um gatilho. Basta ver como o Justiceiro tem sido utilizado no momento atual dos EUA. E, sobretudo, aqui no Brasil, temos um problema ainda maior em distorcer esses personagens. Capitão Nascimento que o diga.

De toda forma, é uma HQ que recomendo. Acho que todos precisam ter sua própria percepção sobre a obra e sobre o personagem. Eu não sei dizer se gostei ou não, mas sei que valeu a pena ler.

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