Review | Berlim (HQ)

Imagine-se passeando pelas vibrantes ruas da capital alemã nos anos 1920, onde cabarés fervilham, artistas revolucionam a vanguarda e ideologias políticas colidem a cada esquina. É nesse cenário efervescente que Jason Lutes nos transporta com sua obra-prima dos quadrinhos, Berlim. Fruto de mais de duas décadas de dedicação, a HQ épica mergulha de cabeça na ascensão do nazismo, revelando uma cidade em plena ebulição cultural e social.

Com um traço detalhista e uma narrativa envolvente, Lutes nos apresenta personagens cativantes, como Marthe Müller, uma jovem que troca a vida burguesa em Colônia pela libertária Berlim, e Kurt Severing, um jornalista idealista que perde a convicção na palavra impressa à medida que o extremismo avança. Através de seus olhos, testemunhamos uma sociedade que, aos poucos, escorrega para a brutalidade fascista. A HQ é uma viagem no tempo, onde cada página é um convite para explorar os contrastes e as complexidades de uma era que moldou o século XX.

Há um detalhe curioso sobre o longo processo de criação de Berlim, que só reforça o peso histórico e emocional da obra. Jason Lutes começou a contar sua história em 1996, com a ideia de que levaria cerca de 14 anos para finalizar seu épico em quadrinhos. Mas, planos raramente sobrevivem ao caos da realidade. Foram necessários 22 anos para que a HQ fosse concluída, e isso acabou influenciando significativamente a forma como a HQ foi recebida quando seu último volume chegou às mãos dos leitores em 2018.

Ambientada entre 1928 e 1933, a trama não apenas acompanha a derrocada da República de Weimar, mas também dá ao leitor um lugar na primeira fila para assistir à ascensão de Hitler e do Partido Nazista. Ao final do segundo volume, City of Smoke, Lutes encerra com a vitória esmagadora do NSDAP nas eleições federais de 1932 — um momento de virada que deixa o leitor em suspense, imaginando como as peças continuarão a cair no tabuleiro da história. Assim, a obra transcende os quadrinhos, convidando a uma reflexão profunda sobre o passado e suas inquietantes semelhanças com o presente.

O intervalo inesperado trouxe consigo algo terrivelmente interessante: um jogo de espelhos entre a história contada e o mundo contemporâneo no momento em que a HQ foi concluída, em 2018. Afinal, o mundo de 1996, quando Lutes começou sua jornada, parecia bem diferente do cenário de 2018, marcado pela polarização crescente e eventos como a eleição de Donald Trump e a manifestação Unite the Right em Charlottesville.

Não à toa, Berlim foi celebrada como uma obra de resistência anti-fascista quando chegou ao fim. Mais do que falar do passado, a HQ acerta em cheio no coração das ansiedades do presente.

Apesar de toda a aclamação que Berlim recebeu como uma HQ que conversa com os desafios do presente, essa leitura tem seus limites. Jason Lutes não criou um tratado histórico sobre a Alemanha dos anos 1920 e 30; ele escreveu uma ficção histórica – e o “ficção” aqui pesa mais que o “histórica”. O foco dele não está nos grandes eventos ou líderes que você vê nos livros, mas nas vidas comuns, no dia a dia de pessoas tentando fazer sentido de uma crise que parece maior do que tudo ao seu redor.

Mesmo quando figuras históricas aparecem na trama, elas quase passam despercebidas. Hitler, por exemplo, surge tão brevemente que mal dá tempo de notar. Goebbels tem um pouco mais de espaço, mas está ali mais para dar um toque de realidade à história do que para roubar os holofotes. Juntas, essas figuras – reais e fictícias – ajudam Lutes a criar uma Berlim que vai além dos fatos históricos: é um retrato íntimo e simbólico de uma sociedade à beira do abismo.

O ponto é que Berlim não está preocupada em recontar a história com precisão acadêmica. O que importa para Lutes é mostrar como era viver nesse momento de tensão permanente – quando as estruturas pareciam ruir, e a ordem estabelecida já não fazia mais sentido. A crise que ele retrata é antes de tudo simbólica.

Logo no primeiro capítulo, a jovem Marthe, recém-chegada à cidade, se espanta ao ver um pedinte que é veterano da Primeira Guerra. Para ela, esse homem deveria ser tratado com respeito. Para Kurt Severing, jornalista local e co-protagonista da trama, ele é só mais um pedinte. Essa pequena cena já diz muito: ali está uma sociedade que perdeu a capacidade de distinguir seus próprios símbolos. E quando tudo vira uma massa indiferenciada, o terreno está pronto para a barbárie.

O título do primeiro volume, City of Stones, traz exatamente essa ideia. Em um dos momentos mais marcantes da HQ, Kurt descreve Berlim como algo que pode se tornar um muro – onde cada pedra tem seu lugar, colocada com cuidado – ou uma pilha de pedras soltas, sem propósito, prestes a desabar. Essa metáfora atravessa toda a obra, que se interessa mais pelas rachaduras do que pelos alicerces, mais pelas pessoas do que pelos monumentos, mais pela angústia do presente do que por qualquer lição de moral no final.

Sim, é possível ver ecos do presente em Berlim. É difícil não ver. Mas essa não é uma história feita para encaixar em manchetes. Ela não dá respostas fáceis, nem propõe soluções. Ela convida à empatia, à escuta, à dúvida. E talvez por isso mesmo continue sendo tão necessária.

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