Imagine que o País das Maravilhas é uma cidadezinha belga no fim dos anos 80. E que Alice é uma menina de 13 anos que foi abdandonada pela mãe e cujo pai se afunda no trabalho pra evitar pensar nesse abandono da esposa e por não saber ser pai e mãe de uma adolescente. A toca do coelho é um muro, onde Rosie (nossa Alice) se senta deprimida e contempla o vazio de sua existência. É assim que vejo O Muro.
É bem provável que a autora, Céline Fraipont, não veja Alice no País das Maravilhas como referência ou, de alguma forma, inspiração para essa história. Mas como sou grande entusiasta da obra de Lewis Carroll, eu acabei fazendo automaticamente essa associação.
Na minha interpretação, a Alice de Lewis é uma menina que está entrando na puberdade e não sabe lidar com todas as mudanças que isso traz. A questão de crescer e diminuir de tamanho, por exemplo, se relaciona com o fato de que nessa fase o corpo cresce mais rápido e algumas vezes parece desproporcional. Quando ela encontra a Lagarta e tem aqueles questionamentos filosóficos sobre ‘quem é você?‘ (conhece-te a ti mesmo, hum?) e cuja resposta é algo como ‘quando saí de casa hoje era uma pessoa, e agora já não sei mais quem sou‘, tem muito a ver com como tentamos entender nosso lugar no mundo enquanto construímos nossa própria personalidade e caráter.

Por isso fiz essa associação com O Muro. Nesta história, Rosie está na mesma fase da vida e precisa se encontrar para se encaixar no mundo. Acontece que sua vida e a sociedade que a creca são bem complicados. A única alegria de sua vida é sua amiga Nath, com quem passa a maior parte do tempo. Quase sempre fazendo nada juntas e conversando sobre futilidades do dia a dia. Cigarros e álcool são seus combustíveis enquanto, ocasionalmente, matam aula.
Fica bem claro desde o início, que Rosie é uma introvertida e que até gosta de estar com sua única amiga, mas não é lá de falar muito. E o fato de sua mãe ter fugido para Dubai para ficar com um homem por quem se apaixonou e de seu pai trabalhar tanto para simplesmente não ter tempo de pensar em mais nada, a deixa completamente desestruturada e sem rumo. Sua vida se resume a passar o tempo.
Um dia, Nath precisa de afastar de Rosie porque seus pais dizem que ela não é uma boa influência. Irônico, pois a família de Nath também não é lá essa maravilha, e sua mãe até dizia que Rosie era uma menina educada (o que de fato é). É aí que ela se afunda ainda mais em sua depressão.

Certa vez, enquanto matava aula sentada no muro onde sempre ia com Nath e bebia sua garrafa de whisky, Rosie conhece Jô. Um rapaz tão ‘estranho’ quanto ela e com quem acaba ‘conversando’ e tendo afinidade. Com o tempo, Jô e Rosie se tornam mais próximos e até viram cúmplices.
Jô era envolvido com uma galera que vendia drogas. Ele mesmo vivia sozinho aos 16 anos em um apartamento cheio de discos e posteres de rock. Se sustentava com o que ganhava traficando e com a comida que furtava do mercadinho. Assim, a menina não apenas se afunda mais no álcool como também conhece outras drogas. Porém, encontra refúgio na amizade verdadeira e pura de Jô, que apesar do desajuste social, tinha bom coração.
Ao mesmo tempo, Rosie acaba encontrando em Jeanne o que poderia ser uma irmã. Ela era mais velha e parecia amiga de seus pais. Tinha um carinho especial por Rosie. Sempre que a menina recorria a ela em seu salão de beleza, lhe dava a tenção e o carinho que não tinha mais dos pais.

Eventualmente, as coisas pareciam melhorar (de certa forma) na vida de Rosie. Até que (mais) uma tragédia acontece em sua vida e tudo parece deixar de fazer sentido novamente. Contudo, dessa vez as coisas parecem diferentes. É como quando Alice volta do País das Maravilhas mais madura e com toda a experiência de vida maluca que teve naquele lugar sendo agora aplicada em sua vida ‘normal’. Ela cresceu e aprendeu muito. O mesmo acontece com Rosie, porém, bem lá no fundo, tudo que ela queria e precisava era ser uma garotinha.
Ao final, sua vida não está muito melhor do que estava antes da história contada no livro, porém, ela já não é mais a mesma também. E talvez agora esteja mais preparada ou pelo menos endurecida para encarar a vida.
O Muro é uma leitura rápida porém impactante. Mostra de forma crua as dificuldades de lidar com os problemas que já são naturais a todos nessa fase da vida, mas que podem ser muito potencializados em ambientes hostis e destrutivos. As escolhas da autora na narrativa são muito acertadas e fazem o leitor ser atingido forte em vários momentos. A arte contribui demais para isso. É fria e escura, como uma música gótica dos anos 80 ou visceral e forte como um bom punk rock. Parece simples demais mas ao mesmo tempo rica em detalhes.
Esta é uma obra que pode ser muito importante para muitas pessoas. Pode ajudar a se encontrar, se entender e identificar. Mas também pode deixar triste e afundar quem já tem tendência a isso. Então é divisiva nesse sentido, funcionando para o bem ou para o mal na mesma proporção. De toda forma, eu recomendo. Pois é certo que você não vai passar incólume a essa leitura.
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