Uma série distópica, que mostra o mundo em um estado pós-apocalíptico devido a uma pandemia, pode não parecer a melhor coisa pra se assistir nos tempos atuais. Mas acredite: Sweet Tooth pode ser o sopro de esperança transvestido de escapismo que você está precisando.
A série que é baseada em histórias em quadrinhos do premiado autor Jeff Lemire, mostra a jornada de Gus (Christian Convery), uma criança que se vê forçada a se aventurar em um mundo caótico que a teme/odeia.

Na história, um dia o mundo se viu diante de uma pandemia mundial de uma doença que ficou conhecida como Flagelo, causada pelo vírus H5G9. O Flagelo é altamente contagioso e costuma levar os infectados à morte. Ao acompanharmos a ascensão do vírus, vemos hospitais lotados, pessoas com máscara para se proteger, pânico, desinformação… Soa bem familiar, não?

Acontece que as HQs nas quais a série se baseia, começaram a ser lançadas em 2009. E mesmo a adaptação live action, começou suas gravações em 2019. Sim, tudo isso é bizarramente pensado e desenvolvido antes do mundo conhecer o COVID-19.
Diz-se que, quando a produção foi interrompida para manter-se o distanciamento social, os produtores e a Netflix chegaram a se reunir para repensar a abordagem, afinal, o impacto poderia ser muito ruim.
E de fato, ao assistir o primeiro episódio, pelo menos nos 20 ou 30 minutos iniciais, você pode sentir algum gatilho ativar, ou simplesmente desistir por achar mais do mesmo, o verdadeiro ‘já vi esse filme’. Contudo, a série não é sobre isso. Ou pelo menos, não apenas sobre isso.
Sweet Tooth está muito mais para uma história de esperança, de inocência e pureza heróicas. Talvez isso até seja um problema para quem já está edurecido, entristecido e, principalmente, desesperançoso demais com tudo que essa pandemia do mundo real continua nos causando. Como se identificar com uma história que usa elementos muito familiares mesclado a fantasia para transmitir uma mensagem que pode ser extremamente difícil de acreditar (ou sentir) quando já se perdeu tanto na vida real em circunstâncias parecidas?

Na série, ao mesmo tempo em que o vírus começa a se espalhar de forma descontrolada e feroz, todas as crianças passam a nascer híbridas com animais. Inclusive Gus, o protagonista da história. Fica bem claro que há esse paradoxo do ‘ovo e a galinha’, de quem surgiu primeiro: os híbridos ou o vírus. E como nunca se obteve uma resposta oficial, a população concluiu que um era culpa do outro, e mais importante, que a humanidade foi condenada por causa dessas crianças híbridas.
E aí moram duas das principais reflexões levantadas pela série: a intolerância e a desinformação. Nunca ficou provado que a doença estava diretamente ligada aos híbridos, muito menos que um era a causa do outro. Talvez fossem mesmo, assim como talvez essa informação estivesse sendo escondida por forças maiores. Mas tudo era especulação, quase teoria da conspiração. Mesmo assim, a reação da humanidade foi a pior possível.
Pessoas com o Flagelo eram queimadas vivas em suas casa, com todos os seus pertences, para que não houvesse mais nenhuma possibilidade de propagação da doença. As crianças passaram a ser brutalmente caçadas, quando não eram simplesmente abandonadas pelos pais recém-nascidas. E assim a sociedade se afundou cada vez mais em um colapso, até se tornar selvageria.
Você deve estar se perguntando: mas onde estão a esperança, inocência e pureza? Em Gus. Antes do mundo entrar no modo ‘cada um por si, e todos contra os híbridos e doentes’, seu pai foge para uma reserva florestal e por lá vive completamente isolado do mundo com o bebê híbrido de humano e cervo. Dessa forma, Gus foi criado em uma bolha onde não conheceu o ódio, especialmente aquele irracional que a humanidade desenvolveu contra criaturas como ele. É claro, ele foi privado de coisas boas também, mas cresceu puro em um mundo que se esqueceu o que é pureza.
A narrativa de Sweet Tooth é quase previsível na maior parte do tempo, mas isso não é um problema. Pra quem já é minimamente familiar à Jornada do Herói, ou mesmo que não conheça esse método mas já viu filmes e séries ou leu livros demais, vai notar claramente cada uma das etapas na história. Contudo, as atuações, o design de produção, trilha sonora, e todos os elementos técnicos fazem dessa história muito cativante.
Também vale nota a impressionante capacidade da Netflix para encontrar crianças talentosas (apesar de que nesse caso não sei se o mérito é deles ou da Warner, que também está envolvida na produção). O ator mirim que dá vida ao protagonista é um poço de fofura, talento e carisma. E se você não se apega e se emociona fortemente por ele, o problema está em você mesmo. Ainda mais se você tem filhos.

Da mesma forma que faz com o espectador, Gus consegue encantar a todos os personagens que ainda possuem alguma humanidade (bem como os que são puramente animais) com quem interage. Fica clara a mensagem de esperança que ele passa, tanto na história, quanto para a vida real.
Uma das coisas mais legais da série é que ela pode ser vista por diversos públicos e cada um pode senti-la de forma diferente, ainda que com muito em comum. E isso é proposital. Veja o que disseram os produtores da série, Susan Downey e Robert Downey Jr. (sim, o Homem de Ferro e sua esposa na vida real são responsáveis por essa adaptação):
“Adoramos encontrar histórias que podemos assistir com os nossos filhos ou que podemos recomendar às nossas mães, ou seja, esse tipo de entretenimento que agrada todas as idades. Essa história tem elementos muito reais, e o mundo que criamos é muito interessante”, afirmou Susan.
“Sempre deixo tudo nas mãos de Susan, para garantir que a história seja realista e que os personagens sejam incríveis. Esta série tem grandes elementos para chamar atenção, mas também tem personagens interessantes, que fazem o público torcer para eles”, completou Robert.
Ao final, ficam bons ganchos para o futuro da série, sem deixar de marcar com clareza o fim dessa primeira parte da história. E os produtores estavam certos: Sweet Tooth é uma história para praticamente qualquer público, desde crianças que já tenham um entendimento mais apurado da realidade (desde que assistam acompanhadas dos pais) até os mais velhos e que procuram uma boa e consistente história que mescla aventura, fantasia, suspense, drama e elementos (bizarramente) próximos da realidade, que está beirando a uma distopia.
Não se apegue aos primeiros minutos da série. Espere, assista mais e com atenção. Ela é muito mais profunda do que parece a princípio.
Ah, e se você se interessou pela HQ que deu origem à série, saiba que recentemente a Panini lançou uma versão com várias edições compiladas para quem quiser acompanhar do início. Vou deixar o link aqui embaixo dela e também da versão em inglês, que está com um preço bom (pelo menos na data em que escrevi isso). Só de clicar no link já ajuda bastante, então pode clicar a vontade 😉
Sweet Tooth Edição Deluxe Vol. 1 Panini